20 anos de “Sobrevivendo no inferno” – Entrevista com Acauam Oliveira (UPE), parte 1

Sobrevivendo no inferno
Capa do livro Sobrevivendo no inferno, Companhia das Letras

Retomando os trabalhos da coluna “Interpretações do Brasil e musicalidades”, publicamos entrevista inédita com Acauam Oliveira, Doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Universidade de Pernambuco (UPE). Oliveira escreveu a introdução do livro Sobrevivendo no Inferno (Companhia das Letras), publicado ano passado, que traz todas as letras do disco homônimo dos Racionais MC’s, cujo aniversário de 20 anos do lançamento era então celebrado. Ele tem se destacado na crítica musical e cultural, especialmente sobre a canção brasileira contemporânea e suas movimentações recentes. Em conversa com Pedro Cazes (coordenador da coluna), ele fala sobre os significados da publicação do livro, o lugar do rap e da produção periférica no cenário nacional e sobre a estética dos Racionais MC’s, construída ao longo de três décadas de carreira. Dividimos em duas partes, pois a conversa rendeu! Boa leitura.

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Sobre a seção “Interpretações do Brasil e musicalidades”:

A seção “Interpretações do Brasil e musicalidades” busca abrir um espaço de debates e investigações sobre a sociedade brasileira a partir da produção musical, em seus diversos formatos e estilos. Refletindo tanto sobre os múltiplos cenários contemporâneos quanto sobre a vasta produção musical de nosso passado mais ou menos recente, o interesse aqui é perseguir os nexos que possam descortinar formas de pensar o país, seus desafios e impasses. Para isso, contaremos com a colaboração de pesquisadores, artistas e ensaístas em textos autorais de formato mais livre e entrevistas, visando estabelecer um diálogo que amplie o repertório do pensamento social para a compreensão de temas nem sempre presentes no circuito acadêmico. As musicalidades brasileiras são, para nós, tanto um campo de investigação sobre as dinâmicas sociais da cultura, como também, e fundamentalmente, um lócus potente de produção de reflexões e representações sobre o país, que alimentam a nossa vida social e imaginação política.

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BVPS: Você escreveu recentemente a introdução de um livro cujo conteúdo é, no mínimo, incomum: as letras do disco “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC’s – um marco no rap nacional que completou 20 anos de idade com assombrosa atualidade em 2018. Levando em conta que as letras já estão disponíveis na internet, você poderia nos falar um pouco sobre as motivações e os sentidos envolvidos no projeto da publicação?

Além do dado mais imediato da adoção da obra como leitura/audição obrigatória do vestibular da Unicamp, acredito que o lançamento do livro possa ser lido no interior do conjunto de comemorações pelo aniversário de um dos mais importantes objetos culturais da história do país. Além do que, nos últimos anos os Racionais veem promovendo várias comemorações por seus trinta anos de estrada – a publicação do livro se enquadraria também nesse contexto.

Para além das motivações mais imediatas, cabe lembrar um dado fundamental, que é o caráter algo inédito, ou incomum – como você coloca – dessa publicação. Salvo engano é a primeira vez que um disco é convertido integralmente em livro no Brasil (e aqui não tenho certeza, mas até o momento ninguém desmentiu essa afirmação). O que atesta tanto o reconhecimento cada vez maior por parte da “elite letrada” da importância e qualidade da cultura periférica, quanto a centralidade do trabalho dos Racionais no interior dessa tradição marginal. De uma perspectiva política também é compreensível esse movimento de aproximação entre os dois campos culturais. No caso específico da universidade, isso tem acontecido em parte porque a periferia e a população mais pobre estão (ou estavam) aos poucos ocupando esses espaços, o que tem gradualmente mudado a maneira de se enxergar e analisar as coisas. Mas mesmo nas universidades mais “brancas” e excludentes (i.e. “tradicionais”) é possível dizer que o interesse pela cultura periférica tem crescido.

Em relação ao Sobrevivendo no Inferno, me parece que seria um tanto ingênuo acreditar que a parte mais elitista da cultura universitária brasileira tem se interessado pelo disco somente por reconhecer a sua importância artística. Acredito que esse movimento tenha muito mais a ver com o fato da universidade estar sentido a corda apertar em volta do pescoço, com a emergência de um dos contextos políticos mais adversos dos últimos tempos – em vários pontos similar ao que acontecia nos anos 1990, no contexto de desenvolvimento e consolidação da cultura hip hop nacional – queafeta diretamente a educação pública. Portanto, se há um interesse crescente da academia por aquilo que a periferia tem a dizer, é porque ela está buscando desesperadamente por lições de sobrevivência.

Desse modo é compreensível que as universidades se voltem para essa produção cultural, pois foi esta que, por meio da análise minuciosa de seus efeitos sociais mais perversos, elaborou algumas das mais importantes reflexões a respeito desse contexto de desmanche da esfera pública, e que agora retorna com toda força. A periferia percebeu antes de todo mundo que o projeto político do Estado brasileiro naquele momento consistia em transformar o país em um imenso Carandiru. E além de oferecer o melhor diagnóstico da situação, essa produção cultural funcionava como um verdadeiro “manual de sobrevivência” do guerrilheiro urbano.

O que eu acho relevante nesse caso é que mais do que nunca a universidade está reconhecendo que precisa da periferia, só que agora não mais como objeto de estudo ou mão de obra barata, para cuidar do espaço de estudo do filho do patrão. A universidade – principalmente os cursos de humanas e as licenciaturas – precisa urgentemente aprender com a periferia, ouvir o que ela tem a dizer, se quiser continuar viva. Resta pensar o que a periferia ganha com isso, qual vai ser a moeda de troca, ou se essa relação vai se dar naquele velho esquema de apropriação que a gente já conhece.

Mas, para voltar a sua pergunta, creio ser interessante colocarmos a questão de uma perspectiva menos cuidadosa e mais direta, para dar logo nome aos bois. Essa publicação não se trataria, em última instância, de mero oportunismo editorial? Tal questão já foi colocada por aí algumas vezes (confesso que menos do que eu imaginava), e pode servir para indicar alguns aspectos importantes.

Em primeiro lugar, cabe dizer que a periferia – pelo menos até onde eu pude perceber – no geral tem compreendido o livro como mais uma conquista dos Racionais. Desde que o livro foi lançado eu tive a chance de participar de algumas rodas de conversas com uma galera que é envolvida com o hip hop de alguma maneira, ou que curte muito rap. E o que eu pude perceber é que dentre essas pessoas a recepção do livro tem sido muito boa. O sentimento é muito mais de orgulho por mais uma conquista da periferia do que a sensação de uma coisa desnecessária, ou redundante. Sem querer desviar a atenção para o interesse da pergunta, não seria esse o foco principal a se manter nesse caso? Compreender o livro no interior de uma narrativa de vitória dos próprios Racionais e de sua comunidade?

Por outro lado, tem um aspecto implícito nessa pergunta que considero ser bem relevante.Não tanto sobre a importância ou redundância do livro, mas sobre os efeitos mais concretos da aproximação entre diferentes classes e culturas. Porque se o Sobrevivendo no Inferno agora está presente na Unicamp, mas o público dos Racionais em grande medida ainda não, isso obviamente é um problema que levanta questões não tanto sobre a importância do livro, mas sobre a relação sempre tensa, e historicamente desigual entre academia (a “elite letrada”) e cultura da periferia. Porque se a obra passa a ser estudada, se tornando em alguma medida parte do cânone da Universidade, mas a periferia continua de fora da Unicamp, da USP ou de qualquer outra instituição acadêmica de prestígio do país, então os problemas denunciados pelo rap desde os anos 1980 continuam existindo. O que, aliás, é um movimento histórico de longa duração. Não me parece exagero dizer que aquilo que de melhor e mais interessante o país já produziu surge no interior da cultura popular, ou com ele se relaciona em alguma medida, que em troca recebe pouco, quase nada, quando não aquilo que de pior o país tem a oferecer. O resultado é, de um lado, uma produção cultural riquíssima, feita por sujeitos relegados a condição de marginalidade e que precisam lutar para sobreviver; e de outro uma universidade que produz um saber que, do ponto de vista de sua relevância social, assume muitas vezes um caráter bacharelesco e ornamental, como uma espécie de enfeite de luxo, justamente por ser produzido a partir de uma fratura social que a ela própria interessa perpetuar. E para resolver esse descompasso não adianta a universidade mudar uma vez mais seus objetos de pesquisa. A fratura precisa ser enfrentada efetivamente, por meio de mudanças estruturais concretas. Ela precisa mudar a sua cara e a sua cor, porque é só aí que ela vai ser capaz de propor uma mudança epistemológica mais real e profunda.

 

BVPS: Seria correto dizer que só agora, após décadas de crescente sucesso comercial, o rap está ganhando maior atenção por parte da reflexão crítica “acadêmica” e por editoras e outras instâncias de legitimação cultural?

Em linhas gerais acredito ser correto dizer que o rap vem ganhando uma atenção cada vez maior por parte da crítica acadêmica, pois é cada vez mais comum se deparar com o tema em congressos, artigos, teses e dissertações. Mas eu tenderia a matizar um pouco essas colocações. Primeiro porque já tem algum tempo que o rap suscita interesse no meio acadêmico, ainda que atualmente a quantidade de trabalhos seja muito maior. E se ampliarmos o foco para as produções culturais periféricas, como a literatura e o teatro, não se pode dizer que a academia tenha ignorado o que acontecia a seu redor – o que é bem diferente de dizer que ela aprendeu a lição. Em segundo lugar, temos de reconhecer que a música popular em geral sempre ocupou um espaço secundário na academia e, ainda que essa realidade já tenha se alterado muito, ainda é notório seu espaço secundário, como apêndice nos cursos de Letras, Ciências Sociais e música erudita – as chamadas humanidades. E por fim, ainda que seja um fator relevante – sobretudo em relação a visibilidade –não podemos considerar apenas o sucesso comercial como fator de explicação para o interesse acadêmico no rap, posto que estilos com cifras de venda bem maiores – como o sertanejo universitário, ou o pagode romântico nos anos 1990 – despertam muito menos interesse (o que também não deixa de ser um equívoco, a seu modo). De qualquer forma, creio que a percepção geral é que o rap é atualmente um objeto cultural de extrema relevância, que tem produzido algumas das mais interessantes obras artísticas dos últimos anos.

 

BVPS: A cultura hip hop costuma ser atravessada por certas tensões envolvidas na sua própria afirmação política/cultural. Tensões, por exemplo, entre um discurso mais “politizado” (na conotação mais usual) e a valorização de um estilo “gangsta” ou de elementos da criminalidade. Para não uniformizarmos demais a produção do rap nacional, seria possível indicar de que modo o estilo dos Racionais MC’s se singularizam no panorama mais amplo?

Na verdade, acredito que essa polarização entre um discurso mais “politizado” e a valorização mais, digamos, inconsequente do “gangsta”, que louva a bandidagem enquanto “estilo”, como sinônimo de postura transgressora e afrontosa, se aplica mais a certa vertente americana do rap e a algumas ramificações do funk brasileiro. Pois para o rap brasileiro dos anos 1990(e não apenas no caso dos Racionais) a figura do bandido e do ladrão nunca foi tratada como pura metáfora (ainda que não deixe de ser isso também). O que acontece nesse caso não é bem uma polarização, mas sim a politização extrema dessa figura, que incorpora a contradição central do sistema que o rap procura estabelecer. Ou seja, a questão política central desse modelo de canção passa precisamente pela ressignificação completa da figura do bandido e do criminoso, por meio da construção real de um espaço onde esses possam contemplar novos modos de existência para além da condição de corpos descartáveis que é o lugar reservado a eles pela sociedade. Quando Brown, Sabotage e MV Bill interpretam bandidos em suas composições a ideia não é representar uma figura poderosa cheia da grana e cercada de mulheres, espécie de poder alternativo que é uma representação também do artista negro na Indústria Cultural (Djonga trabalha de maneira interessante com o bandido enquanto conceito em seu último trabalho, “Ladrão”, como um negro a tomar de assalto aquilo que o capitalismo branco roubou). Quando esses artistas falam do bandido, ou melhor, quando falam junto com o bandido, é o criminoso de fato que está sendo retratado, pois a ideia é elaborar um horizonte discursivo onde essa anti-voz, avesso da nação, possa efetivamente existir.

Uma das descobertas mais radicais do rap consiste na percepção de que o conjunto de problemas da periferia passa, em alguma medida, pela maneira como o Estado trata essa figura, como ela é construída enquanto “verdade” última do sistema. Creio que Sabotage é um exemplo perfeito nesse sentido: ex-gerente do tráfico, o papel que a sociedade brasileira naturalmente reservaria para ele é de reproduzir eternamente essa condição – não existe ex-bandido no Brasil quando se é pobre – que é a razão de ser de uma sociedade que resolve questões sociais por meio do encarceramento e do extermínio. A sociedade brasileira se constitui por meio do processo de transformar possíveis cidadãos em bandidos e marginais. Seres criados para a morte e para o esquecimento, homo sacer, razão de ser do sistema. Do escravo colonial ao pequeno traficante moderno, trata-se da continuidade de um mesmo projeto. É precisamente esse o lugar que o rap pretende transformar em outra coisa, possibilitando que um cara como Sabotage consiga se inserir no sistema por uma via não prevista. Ou melhor, em parte prevista, porque é ainda de música que se está falando “Crime, futebol, música, carai \ Eu também não consegui fugir disso aí \ Eu sou mais um”. Mas é não previsto na medida em que se afirma que aquele lugar, que para o sistema e para a opinião pública é o da indignidade absoluta, também é um lugar dotado de complexidade, de vida, de humanidade. Não um lugar de pureza inocência (como sustenta certo sociologismo mais tosco e paternalista, que afirma que o sujeito se torna bandido exclusivamente por ser pobre)e longe de ter o apelo sexy do Gangsta (o destino do bandido é certo e nada positivo, além de ser uma figura que geralmente leva o mal para dentro da comunidade), mas certamente um lugar dotado de dignidade e ensinamentos profundos, dentre eles, o sentido mais profundo da totalidade nacional.

Trata-se, pois, de um projeto que pensa uma mudança radical no estatuto social do bandido e que, portanto, aposta em uma transformação estrutural profunda naquela que é a base mesma de sustentação do próprio projeto de país, fundado na violência e no racismo. Eu acredito que uma das lições fundamentais que ainda podemos aprender com o Sobrevivendo no Inferno seja justamente a necessidade de se contrapor diretamente à lógica, hoje hegemônica no país, que defende que “bandido bom é bandido morto”. Na verdade, esse é o projeto do Estado brasileiro desde a colonização, mas que agora vem sendo assumido deliberadamente como bandeira e como causa. Para o rap dos anos 1990 o destino do “bandido” e daqueles que estão à margem aparece como uma espécie de imagem síntese do destino de todo jovem negro periférico, na medida em que se compreende que massacres como o do Carandiru e chacinas como a da Candelária e do Vigário Geral não foram um acidente, mas a consolidação de um projeto de Estado. Portanto oferecer alternativas reais para a vida desses sujeitos é a condição para a emancipação da periferia como um todo, uma vez que a produção do bandido preto pobre como “inumano” e, portanto, como um corpo que pode ser morto e descartado, é condição de manutenção da “normalidade” social. A radicalidade do rap consiste também em reivindicar a inclusão desse sujeito, cuja exclusão é a própria condição de existência do sistema, reconhecendo no seu dilema o destino de toda periferia enquanto avesso daquilo que se chama de “civilização brasileira”. Daí a radicalidade política desse projeto, que se coloca contra o próprio modo de organização do Estado.

Com relação à singularidade dos Racionais no interior desse cenário, que faz deles (na visão de muitos, entre os quais me encaixo) o mais importante grupo de rap do país, seria necessário um exame mais detalhado. Mas posso citar brevemente dois aspectos. Primeiro, o desenvolvimento de um modelo discursivo complexo que parte do princípio de incorporação de múltiplas vozes conflitantes a partir daquilo que Walter Garcia[i] definiu como um modelo épico de composição. Um modelo narrativo próprio que está ligado organicamente ao projeto político do rap dos anos 1990 e atinge seu ápice no disco de 2002, influenciando toda uma geração. Note-se que para a geração mais recente, ligada as batalhas de MC’s, o modelo de construção estética\social foi alterado radicalmente. Além disso, o grupo mantém até hoje uma percepção surpreendentemente aguçada de seu entorno. É comum a impressão entre os ouvintes de Racionais que o grupo está sempre a frente de seu tempo, adiantando questões que só ficarão evidentes tempos depois, e determinando caminhos. Na verdade, seria mais exato dizer que o grupo está com os dois pés fincados no seu tempo, mas absolutamente atento a tudo o que se passa a seu redor, com um grau de lucidez e contundência que impressiona. E não só musicalmente: quem já se esqueceu do discurso de mano Brown no palanque do PT, dando a letra exata do que iria acontecer?

Nisso consiste outra singularidade do grupo: a capacidade absolutamente extraordinária de encontrar a formulação estética precisa para questões decisivas colocadas pela comunidade periférica que, a partir dessa, ganha as consciências e se torna paradigmática. Por exemplo, a passagem do foco na denúncia da realidade oculta da periferia presente nos primeiros discos para a necessidade de se formular uma espécie de “teologia materialista” a partir de Sobrevivendo no Inferno surge da necessidade real de se pensar por formas de sobrevivência, que demandam o desenvolvimento de uma nova ética em que os negros periféricos se reconheçam em suas práticas enquanto irmãos. O ponto de partida é um problema bem concreto (o extermínio da comunidade periférica, tanto por razões externas quanto por razões internas), que exige um outro modelo de existência, a se construir, e para a qual a forma estética aponta. Produção esta que tem a extraordinária e raríssima capacidade de se tornar uma forma de vida.

[i] GARCIA, Walter. Diário de um detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, A. (org.) Lendo Música. São Paulo, Publifolha, 2007.


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