Dossiê | “A queda do aventureiro”, de Pedro Meira Monteiro

O Blog da BVPS traz hoje um dossiê sobre o livro A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil”, de Pedro Meira Monteiro, que teve sua segunda edição publicada em 2021 (Editora Relicário). O livro, revisto e ampliado mais de vinte anos depois de sua primeira edição, recoloca o problema fundamental das possibilidades democráticas da sociedade brasileira – questão que assombrava Sérgio Buarque de Holanda nos anos de 1930 e que também nos é inescapável em 2022.

Convidamos dois especialistas na obra de Sérgio Buarque de Holanda para que respondessem quatro perguntas sobre o livro formuladas por Mariana Chaguri, professora do Departamento de Sociologia da Unicamp. Abaixo seguem as respostas de Sérgio da Mata, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto, e Andre Jobim Martins, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao final, publicamos também um trecho selecionado do prefácio escrito por Mariana Chaguri para a nova edição de A queda do aventureiro.

Boa leitura!

1. Como foi o seu contato com A queda do aventureiro?

Sérgio da Mata: O volume chegou-me às mãos em 2006 ou 2007, quando eu planejava escrever um pequeno estudo sobre a recepção de Max Weber no Brasil. Encontrei A queda inteiramente por acaso na biblioteca do ICHS, aqui em Mariana. Ele chamou a atenção não apenas por ser um trabalho de excelente qualidade, mas principalmente porque se propunha mostrar o quanto de Weber haveria em Raízes do Brasil. Por muito tempo a perspectiva elaborada em A queda do aventureiro foi uma espécie de bússola para mim, e que impressionava ainda mais pelo cuidado com que ele articulou suas leituras desses dois clássicos. Só muito mais tarde comecei a colocar em dúvida algumas de suas proposições centrais. Em 2013, quanto enfim publiquei a primeira edição de meu livro sobre Weber, a hipótese do weberianismo de Raízes já não me parecia ter a mesma força. De toda forma, o pouco que escrevi sobre Sérgio Buarque foi sim influenciado por A queda do aventureiro. Uma de suas grandes virtudes, aliás, é não embarcar na antiga tese filosófica da indistinção entre sujeito e objeto. Sempre que se desconsidera a separação sujeito / objeto, o primeiro acredita fagocitar o segundo sem se dar conta de que, não raro, o que se dá é o oposto. Nada evidencia tão bem esse fenômeno quanto a emulação estilística inconsciente, algo bastante comum nos estudos sergianos. Pedro não incorre nesse erro.

Andre Jobim Martins: Em 2016, começava meu doutorado e estava à procura de um tema. Foi então que saíram a edição crítica de Raízes do Brasil e um dossiê da Revista Brasileira de História em comemoração aos 80 anos do livro – nunca tinha lido Raízes, que não estava na bibliografia de minha graduação. No dossiê, fiquei especialmente intrigado com o texto de Sérgio da Mata, que é, junto com Leopoldo Waizbort, Luiz Feldman e Rogério Schlegel, um expoente da linha interpretativa de Raízes do Brasil como um livro de tendências políticas conservadoras e autoritárias. Não vou entrar muito a fundo nesse debate um pouco bizantino, mas o fato é que me fascinou o contraste entre essas novas interpretações e a ideia mais corrente que se fazia do livro, consolidada por Antonio Candido (gostaria de registrar que, a despeito de erros graves, a interpretação de Antonio Candido mantém sua atualidade graças ao seu grande acerto: ele entendeu Raízes como um livro formador mais do que qualquer outra coisa, um livro que forneceu à sua geração um estoque de ferramentas de inteligibilidade para a cultura brasileira).

Assim, foi só depois de entrar em contato com a literatura revisionista (não há qualquer sugestão pejorativa aqui) que fui atrás da fortuna crítica anterior. Como a interpretação tradicional não foi a primeira a se apresentar para mim, me considero relativamente insuspeito para dizer que, mesmo com a desvantagem de ter aparecido antes e com muito menos material à disposição para a pesquisa, a parte de A queda do aventureiro que seria a princípio a mais vulnerável à refutação por desenvolvimentos posteriores, isto é, aquela que procura mapear os marcos teórico-metodológicos do livro de Sergio Buarque, ainda se lê com grande proveito e é, como o livro todo, incontornável para quem queira compreender Raízes do Brasil. Tenho a impressão de que comentadores mais recentes cujas teses incidem sobre esse problema não lhe deram a devida atenção. De toda maneira, não creio que a linha de interpretação organicista de João Kennedy Eugênio, Waizbort e da Mata chegue a anular a weberiana, pois a verdade é que Raízes é um livro bastante eclético teoricamente – para falar como Sergio Buarque, essa fraqueza do livro é também a sua força.

Aproveito para notar a impressionante diligência de Pedro no levantamento e na interpretação de fontes para seu estudo. Ele não pôde se valer de diversas de publicações que temos hoje e precisou levantar um material que estava fragmentado e que, me parece, em muitos casos, não estava no radar de outros pesquisadores. Seu trabalho foi crucial na abertura de frentes de investigação sobre Raízes do Brasil, não apenas por identificar e trabalhar com essas fontes, mas porque, não satisfeito em encontrá-las, ele facilitou seu acesso, organizando coletâneas importantes das quais acredito que se possa dizer que nasceram da pesquisa para A queda do Aventureiro – penso na correspondência com Mário de Andrade e do volume Perspectivas, pelo qual devemos também um agradecimento a João Kennedy Eugênio, outro buarquiano de qualidade.

2.  O livro analisa o modo como Sérgio Buarque de Holanda aderiu, recusou ou dialogou com diferentes autores e problemas para assentar o horizonte interpretativo expresso em Raízes do Brasil. Neste mapa, as categorias aventura e cordialidade são aquelas presentes no subtítulo, e também ajudam a alinhavar o argumento central do livro. Como você avalia a interpretação de Pedro sobre as duas categorias e de que modo tal leitura participa do debate sobre Raízes do Brasil?

Sérgio da Mata: Embora os dois termos sejam centrais para a arquitetura de Raízes, divirjo da filiação direta que Pedro propõe entre Weber e Sérgio Buarque. Hoje sabemos que o rol de leituras e influências por detrás da feitura de Raízes é bem mais amplo e heteróclito – não obstante a leitura atenta do livro demonstre que Pedro já tinha clareza disso. Que Sérgio Buarque leu e aplicou um ou outro aspecto da obra de Weber, ninguém discute. A questão é saber se isso torna Weber matricial para a confecção de Raízes, e mesmo se tal apropriação chega a ser bem-feita. Tendo a responder com uma dupla negativa. Vejam-se, por exemplo, as palavras de Sérgio Buarque citadas por Pedro na p. 172. Elas mostram quão descuidada é a leitura sergiana da Ética protestante (cf. o que diz Weber nas p. 82-83 da edição preparada por Pierucci). Como quer que seja, não é a Weber, mas a Carl Schmitt que se deve a tal “metodologia dos contrários”. Com propriedade, Reinhart Koselleck chamou a isso a lógica dos “conceitos antitéticos assimétricos” – puro schmittianismo! E mesmo sob esse aspecto a terminologia empregada em Raízes é demasiado espontaneísta e metafórica. Pedro superestimou, a meu ver, o rigor conceitual de Sérgio Buarque. O oposto de “trabalho” não é “aventura”, mas “ócio” (voluntário ou não). E, por definição, entregar-se à aventura significa abandonar o ócio – trabalhar, portanto. Ao passo que a antítese da aventura é o mundo da vida, a Lebenswelt. Aventura é o extra-cotidiano, mas isso – como mostra Weber na Ética protestante – não se confunde com uma “ética” avessa ao trabalho. A própria oposição entre o “semeador” e o “ladrilhador” é bem pouco weberiana, e penso ter encontrado evidências de que a reflexão sergiana sobre a cidade se ampara menos em Economia e sociedade que n’A decadência do Ocidente de Oswald Spengler. Quem buscar rigor weberiano na nomenclatura adotada em Raízes, decerto não o encontrará. Seja porque a formulação de Sérgio Buarque é falha de um ponto de vista lógico (convém lembrar que o neo-kantiano Weber dedicou centenas de páginas à estrutura lógica das ciências histórico-sociais), seja porque sua estrutura dualista a coloca na órbita desse inimigo jurado do neo-kantianismo que foi Carl Schmitt. Se há em Raízes uma inegável, porém difusa, “inspiração” em Weber, a operacionalização conceitual é predominantemente anti-weberiana.

Andre Jobim Martins: O que mais destaca A queda do aventureiro na hoje volumosa fortuna crítica de Raízes do Brasil é a atenção aguçada do autor à linguagem de seu objeto. Por tratar predominantemente de estilos mentais, Raízes do Brasil é um texto desafiador: exige dos leitores uma sensibilidade à sua própria forma, ao procedimento, talvez até mais do que ao conteúdo. Pedro percebeu que, além da metáfora vegetal da germinação e do enraizamento, o argumento de Raízes do Brasil tem uma progressão musical. Termos como “harmonia”, “contraponto”, “coro”, “ritmo” e “compasso” não aparecem por simples conveniência retórica. As ações em sociedade são compreendidas como uma movimentos musicais – num passo que me é especialmente caro, Sergio Buarque assemelha o formalismo mental a uma música entorpecente, que convida intelectuais avessos ao trabalho ao repouso falsamente dinâmico de uma dança macabra que proporciona uma “atonia da inteligência”.

É a partir dessa atenção fina à linguagem que Pedro vai ver na articulação entre aventura e cordialidade uma “invenção a duas vozes”. No caso, a aventura aparece como a voz da invasão portuguesa em sua fase inicial de transplante da cultura contra o pano de fundo da natureza hostil, enquanto a cordialidade vai despontar algum tempo depois, como voz do enraizamento e do crescimento já após a adaptação “bem-sucedida” (conforme lemos nas duas primeiras edições), ganhando vida nas relações entre os indivíduos. Na narrativa de Raízes, a primeira dá lugar à segunda, mas a aventura não sai de cena inteiramente, e as duas, juntas, incompatibilizam as formas de sociabilidade brasileiras com a modernização capitalista. Podemos dizer que em “Nossa Revolução” estaria entrando em cena uma terceira voz, a do “americanismo” ainda incipiente, a primeira voz realmente emancipada da herança europeia e ibérica. Roberto Vecchi, João Kennedy Eugênio e Rogerio Schlegel são comentadores de Raízes que também valorizaram essa estrutura musical em suas análises, mas Pedro foi aquele que realmente buscou incorporá-la em seu próprio argumento, como se pode verificar nos termos que encabeçam os capítulos de A queda do aventureiro: “prelúdio”, “suíte”, “invenção a duas vozes” e “réquiem”.

Lembro aqui uma frase de Friedrich Schlegel, que penso ser bem afinada com o pensamento de Sergio Buarque, para sublinhar o valor literário e formativo de Raízes do Brasil, que parece ter incitado Pedro da mesma maneira como o primeiro romantismo alemão esperava que agissem as formas literárias: como modelos para o desenvolvimento de capacidades intelectuais e expressivas, pelas quais o indivíduo se deixa tocar “para que a flor e o cerne de outros espíritos se tornem alimento e semente para a sua própria fantasia”.

3.  A queda do aventureiro analisa, também, como o universo de referências estéticas e éticas do Modernismo de 1922 foi importante para que Sérgio Buarque de Holanda modulasse um ponto de vista sobre a nação e suas raízes. Ponto de vista que estaria em diálogo com o jogo das alteridades constitutivos de noções como a de antropofagia, bem como das tentativas de estabilização de um caráter nacional a partir do jogo de espelhos entre nacionalismo e cosmopolitismo. Como você avalia este argumento? E qual a importância dela para as interpretações de Raízes do Brasil?

Sérgio da Mata: A queda do aventureiro foi particularmente feliz ao explorar as reverberações modernistas em Raízes. Às conexões exploradas por Pedro eu acrescentaria apenas uma outra, que julgo ainda insuficientemente estudada. Trata-se da importância do mito, ou antes, das potencialidades estéticas e políticas do pensamento mítico. Reli com enorme interesse as páginas (p. 198-200) em que Pedro explora a reflexão de Oswald de Andrade sobre o “homem cordial”. O uso, digamos, “criativo” da fantasiosa tese de Bachofen sobre o matriarcado mostra a que ponto os modernistas perseguiam o avesso do “desencantamento do mundo”. Esse avesso é o mito. De fato, é lícito perguntar se não é exatamente disso que se trata quando se evoca o assim chamado “homem cordial”. Do ponto de vista conceitual, não pode haver algo de mais confuso e autocontraditório. Trata-se de uma sobreposição de imagens, uma caracteriologia heteróclita (devo insistir nisso) de mitemas. Junte-se uma porção de ethos emocional, outra de familismo, outra ainda de anti-ritualismo e, enfim, de crença ingênua na bondade natural do ser humano – eis aí a “cordialidade”. Ora, dessa salada não se extrairá jamais um conceito na acepção própria do termo, mas sim um mito, dispositivo cultural que Max Müller certa vez comparou a uma doença da linguagem. O fascínio de Sérgio Buarque pelo mito se revela nas histórias que ele contribuiu para criar em torno de si mesmo: as tais “aulas do Meinecke”, os tais “instintos políticos corretamente orientados” na sua juventude ou o suposto pioneirismo em citar Weber entre nós (quando sabemos que Alceu Amoroso Lima o fizera em 1925). Essa afinidade eletiva com o mito se expressa ainda em seus elogios ao Cobra Norato de Raul Bopp e em sua inofensiva resenha de O mito do século XX, o obsceno livro do ideólogo-mor do nazismo, Alfred Rosenberg; e não menos na curiosíssima hipótese, proposta em Visão do paraíso, de que os portugueses seriam um povo pobre de mitos, visto que marcado por um realismo “sombrio” e “tosco” (um realismo desmentido pelo atual descontrole do imaginário, com sua epidemia de notícias falsas e cloroquina). O homem cordial é apenas um capítulo a mais da ludus scientiae sergiana em seu livro de estreia. Nesse sentido, receio que evocá-lo e elevá-lo ao estatuto de categoria é deixar-se enredar por ele.

Andre Jobim Martins: Todos se lembram do envolvimento de Sergio com o movimento de 1922, mas, a meu ver, poucos lhe dão a devida consequência. Creio que Pedro Meira Monteiro esteja entre os que fazem a ponte entre a crítica literária e o modernismo e Raízes, começando em A queda do Aventureiro e desenvolvendo essa linha de análise em seu ensaio sobre Sergio Buarque e Mário de Andrade e, mais recentemente, em Signo e desterro. É um trabalho que requer uma pesquisa bastante ampla, porque é preciso, além de atravessar um denso cipoal de mitos sobre o modernismo, ter atenção a algumas continuidades muito inusitadas entre a produção do jovem Sergio, um pouco volúvel e impressionista, e a do intelectual formado que já desponta em Raízes. Destaco um momento que aprecio especialmente: Pedro percebe como certas formulações de “O lado oposto e outros lados” antecipam quase como um pendant o final de Raízes do Brasil.

Não posso deixar de notar algo que não chega a aparecer em A queda do aventureiro, mas que é uma contribuição importante de Pedro, no substancial ensaio apenso à sua edição da correspondência entre Sergio Buarque e Mário de Andrade (texto que também figura, a meu ver, entre o que de melhor já se escreveu sobre Sergio Buarque): a importância, na formação dos intelectuais modernistas, de uma maneira muito particular de se encarar o cristianismo, nem sempre prontamente compreensível para o típico pesquisador de formação laica.

4. Na introdução à nova edição de A queda do aventureiro, Pedro Meira Monteiro observa que o primeiro desafio de sua crítica é lidar com o imaginário que emerge conforme balanços sobre a democracia, o autoritarismo e o patrimonialismo foram sendo feitos, numa atualização de dilemas apontados por Sérgio Buarque de Holanda há oito décadas e que permanecem à espreita da sociedade brasileira. Como você avalia a atualidade – ou não – de tais dilemas para pensar o contexto brasileiro dos últimos anos? E como situar criticamente o livro vinte anos depois, quando a fortuna crítica de Raízes do Brasil já avançou em tantas direções diferentes?

Sérgio da Mata: Devo dizer que meu juízo sobre Raízes do Brasil se torna mais duro a cada vez que me vejo obrigado a relê-lo. As sucessivas alterações e expurgos que Sérgio Buarque realizou no texto produziram uma densa cortina de fumaça sobre o fato, a meu ver inequívoco, de que seu livro originalmente desposava uma clara intenção autoritária. O que nada tem de weberiano, diga-se de passagem. Quanto à questão do patrimonialismo, ela aparece ali incidentalmente; está longe de ser um aspecto central – além de estar equivocadamente formulada, como o próprio Pedro assinala (p. 151), recorrendo a Faoro. A meu ver a grande intuição de Raízes, e isso a despeito de seu essencialismo, repousa na análise do elemento personalista de nossa cultura. Creio que Pedro imprimiu um certo sociologismo à sua leitura do livro, de forma que o personalismo acabou praticamente obliterado na análise. De resto e para concluir, estou de acordo com Faoro quando diz que Raízes do Brasil só se mantém relevante como monumento literário. Sua relevância histórica e sociológica tem sido superestimada – talvez seja esse o aspecto em que eu mais me afaste do que Pedro escreveu em A queda do aventureiro. Por outro lado, é o caso de perguntar por que razão um livro escrito de forma tão deliberadamente ambivalente em termos políticos, como Raízes, continua despertando tanta atenção. Uma das razões me parece estar no fato de que ali se expressa a quintessência de um existencialismo político ainda bastante difundido entre os intelectuais brasileiros, e que desde 1936 vem continuamente se apresentando sob novas formas. Falo de existencialismo político, nos termos do filósofo Hermann Lübbe: “o desejo, sob condições modernas, de existir de forma pré-moderna”.

Andre Jobim Martins: Sinto certa dificuldade em avaliar a atualidade de Raízes do Brasil. É um livro muito instigante para mim, mas essa é minha opinião pessoal, e não pretendo que ela seja representativa de muita coisa. Tendo em mente os desenvolvimentos mais recentes da cultura brasileira, tanto do ponto de vista do triunfo avassalador do conservadorismo como da emergência de novas vozes nos debates culturais e políticos, possibilitada pelas diversas políticas de correção da desigualdade social e racial implementadas por governos de esquerda, me parece muito difícil sustentar hoje algumas teses de Raízes do Brasil, bem como vários elementos do nosso modernismo, que a institucionalidade brasileira, quando ainda tinha ambições de se inserir num concerto mundial de nações, elegeu como acervo prioritário de seu repertório discursivo. Lembro de uma formulação de Signo e desterro, onde lemos que Raízes do Brasil se propunha falar de um mundo em ruínas, o mundo do “passado agrário” patriarcal. Hoje, nosso problema é lidar (também) com as ruínas do modernismo, das quais o próprio livro de Sergio é, se quisermos, um sítio arqueológico importante.

Some-se a isso o fato de que a parte ostensivamente política do livro vem se mostrando bastante problemática. A tese do patrimonialismo tem estado sob ataque em algumas frentes, entre as quais cito o trabalho de Jessé Souza, que convenceu muita gente, ainda que trace um retrato indiscutivelmente distorcido do argumento de Raízes do Brasil[i]. Para complicar ainda mais as coisas, a recuperação da edição de 1936 tem mostrado como o livro não pode ser tranquilamente considerado uma expressão do pensamento de esquerda, como se fez durante muito tempo – sei que a lembrança é desagradável, mas é fato que Raízes do Brasil é um livro da predileção do general que atualmente ocupa a vice-presidência da República. Como o argumento político de Raízes do Brasil é, no meu entender, propositalmente obscuro, pois supõe inovações cuja própria compreensão não estaria no horizonte interpretativo da modernidade europeia (falo da “terceira voz” incipiente do “americanismo”), há ainda o problema de saber se o livro chega a oferecer uma interpretação positiva do Brasil, que é algo ao mesmo tempo necessário mas muito delicado no momento atual, e que está faltando entre nós – a não ser no caso dos aderentes ao ufanismo necrófilo imperante.

No plano formal e estilístico, que acho o mais interessante, penso que a sinceridade radical que o livro propõe como forma de abordar a cultura, bem como o pensamento dialético e musical que A queda do aventureiro captou tão bem, permanecem elementos atuais e necessários numa época em que formas de pensamento rígidas e inflexíveis se impõem como soluções incontestáveis (enunciadas, diga-se, a partir de todos os pontos do espectro político, até mesmo do que hoje se chama de “centro”) para nossa sempre “dura” e “triste” realidade – como lemos na conclusão de A queda, o que nos falta e que Raízes ainda nos oferece é a plasticidade imaginativa de Sergio Buarque. Creio que também haja alguma atualidade na apresentação vertiginosa de impasses e perguntas sem respostas que é o final do livro, nesse olhar em direção ao indeterminado, que se depara com um passado aparentemente superado, mas que de algum modo persiste, com uma matéria que nos fascina e nos repele e com a qual não sabemos como lidar, causando uma disposição mental angustiante, mas que talvez suscite algum tipo de novidade.

Termino anotando um fato que vem me inquietando e ainda não compreendo: entre os clássicos sobre a formação brasileira, suspeito que Raízes do Brasil tenha merecido, ao menos nos últimos dez anos, atenção muito maior de pesquisadores do que outros textos que, salvo engano, foram até bem mais influentes, como Casa-grande & senzala e Formação do Brasil Contemporâneo. Não sei por que é assim, mas posso dizer com certeza, em boa língua brasileira, que aí tem coisa.

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A queda do aventureiro, vinte anos depois[ii].

Mariana Chaguri

Vinte anos após sua primeira edição, A queda do aventureiro de Pedro Meira Monteiro aparece reeditado com o acréscimo de três artigos produzidos neste intervalo, reunidos como “pós-escritos” ao texto original. Se toda reedição reabre a reflexão sobre a pertinência das ideias que inicialmente mobilizaram o autor e sua obra, no caso de A queda do aventureiro a inclusão dos “pós-escritos” é justamente o elemento a dirimir a dúvida, pois são indício da atualidade e da originalidade da análise crítica conduzida por Pedro, vinte anos atrás e agora.

Uma análise assentada na investigação das filiações teóricas de Sérgio Buarque de Holanda e, especialmente de Raízes do Brasil, a partir de uma leitura atenta às recusas, às adesões e às inovações criativas de seu autor. A queda do aventureiro pode ser lido, sobretudo, como um mapa dos muitos lugares percorridos por Sérgio Buarque para a composição de sua obra e, por consequência, para a modulação de sua reflexão sobre a sociedade, a política, bem como sobre os caminhos da teoria social.

Evidentemente, ao longo dessas duas décadas, o panorama de interpretações sobre Raízes do Brasil e seu autor se ampliou, trazendo novas camadas de compreensão sobre ambos. Apenas para ficar nos exemplos daqueles escritos ou organizados pelo próprio Pedro Meira Monteiro, temos Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência, de 2012, e Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, publicado três anos depois, em 2015; além da organização conjunta com João Kennedy Eugênio do volume Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas, de 2008, reunindo vinte e oito estudos e estudiosos dedicados a rever ou a descobrir novos horizontes interpretativos sobre o autor; e, finalmente, a edição crítica de Raízes do Brasil,organizada conjuntamente com Lilia K. M. Schwarcz e lançada em 2016, por ocasião dos oitenta anos de publicação da obra.

Breves exemplos de como Raízes do Brasil ajudou a conformar modos de ler o Brasil, bem como organizou aspectos importantes da imaginação sociológica, historiográfica e política sobre o País. Desse modo, uma análise crítica de Raízes do Brasil a partir de hoje não pode prescindir da interlocução com leituras que a antecederam e que, de modos variados, ajudaram a compor o imaginário do qual uma obra como ela também passa a ser feita contemporaneamente.

Em A queda do aventureiro, Pedro lida com o desafio de dialogar com este imaginário que emerge conforme balanços sobre a democracia, o autoritarismo e o patrimonialismo foram sendo feitos, numa atualização de dilemas construídos por Sérgio Buarque de Holanda há oito décadas e que permanecem à espreita da sociedade brasileira. Ao longo do livro, esse diálogo ganha corpo por meio da construção – minuciosa e rigorosa – do mapa das filiações teóricas de Raízes do Brasil.

Ao longo da leitura, vemos emergir um mapa das filiações teóricas de Raízes do Brasil, quanto uma bússola para percorrer o extenso corpo de problemas e de soluções intelectuais que, acionadas por Sérgio Buarque, ajudaram a dar densidade ao processo de sistematização de categorias e conceitos para análise da dinâmica da sociedade brasileira, de seu passado colonial até meados da década de 1930.

Em um ensaio de poucas citações, mas de profunda invenção teórica, mapear as heranças teóricas pode se tornar um jogo de luz e sombra. Como desvendar, então, a complexidade dessa malha? Se a matriz alemã presente em Raízes do Brasil não é segredo, Pedro busca na obra de Max Weber o primeiro ponto cardeal de seu mapa. Não se trata, contudo, do único. Juntamente com o sociólogo alemão, emergem também um conjunto de outros autores como Vilfredo Pareto, William Isaac Thomas e, com maior peso para o argumento, William Isaac Thomas e Florian Znaniecki.

Menos que um registro do contato que o escritor estabeleceu com diferentes textos e autores, Pedro lê tais autores e Sérgio Buarque uns contra os outros, procurando afinar, por exemplo, o peso da construção teórico-metodológica sobre os tipos ideais, os sentidos e os alcances dos debates sobre a racionalização da vida e as transformações do capitalismo na virada do século XIX para o XX.

Até aqui apontei dois pontos cardeais do mapa de A queda do aventureiro. Em minha leitura, os outros dois são o Modernismo da Semana de Arte Moderna e o contexto próprio de sistematização das ideias sobre a história e a sociedade brasileiras a partir de um ponto de vista sociológico e historiográfico.

Se já conhecemos a cartografia de A queda do aventureiro, importa notar que o problema teórico perseguido ao longo do livro é o da mudança social. Elegendo como ponto de fuga de Raízes do Brasil a urbanização e a perda das “raízes rurais”, Pedro sugere que Sérgio Buarque procura reter e analisar situações históricas ou fenômenos sociais que permitem avaliar como, afinal, a sociedade brasileira muda. Afirmação que parece contraintuitiva na medida em que a obra destaca em seu título justamente as “raízes” do País.

Os muitos lugares do mapa das filiações teóricas construído em A queda do aventureiro apontam como tais matrizes de pensamento interagem de uma forma recíproca, um aumentando a densidade do outro e fazendo com que o Raízes do Brasil seja uma obra marcada pela articulação analítica entre a dinâmica da história e as forças políticas de seu tempo. Assim, o fio original a conduzir o exercício crítico de Pedro está na elucidação do jogo de contrários, das dificuldades da síntese e, sobretudo, das linhas de força que compõem a mudança social.

Para analisar tais linhas de força, A queda do aventureiro toma as categorias aventura e cordialidade que, presentes no subtítulo do livro, são também aquelas que ajudam a alinhavar os capítulos do texto original, os artigos reunidos como pós-escritos e, arrisco dizer, parte substantiva da leitura de Pedro sobre o Brasil. Ler a mudança social a partir dessas categorias implica numa análise que articule cultura e política, imbricação privilegiada por meio da qual questões como a relação entre indivíduo e sociedade, ou do conflito entre ação e estrutura são percebidas e analisadas pelo autor.

Pedro abre caminho para observar as possibilidades e os caminhos pelos quais ocorre — em ritmo lento — a desintegração de um sistema de valores tradicionais a orientar a conduta dos indivíduos, bem como a oferecer a base social mais ampla no interior da qual a relação entre Estado, família e sociedade se estabelece.

A inscrição de tais questões no horizonte de dilemas da modernidade aponta, na análise de Pedro Meira Monteiro, para a força do Modernismo no argumento de Sérgio Buarque. Seguindo o argumento de A queda do aventureiro, por exemplo, nota-se como o universo de referências estéticas e éticas do Modernismo ajudou Sérgio Buarque a modular um ponto de vista sobre a nação e suas raízes, que está também em diálogo com o jogo das alteridades constitutivos de noções como a de antropofagia, bem como das tentativas de estabilização de um caráter nacional a partir do jogo de espelhos entre nacionalismo e cosmopolitismo.

Lendo de modo integrado o mapa das filiações teóricas desenhado em A queda do aventureiro, sugiro que a originalidade crítica do livro está em apontar que a mudança social opera analiticamente, na obra de Sérgio Buarque, no pêndulo entre a liberdade da ação e as constrições da vida coletiva, razão pela qual ela percorre, vez por outra, caminhos improváveis. Os enigmas abertos — teórica, cultural e politicamente — pela improbabilidade são apontados por Sérgio Buarque ao longo de Raízes do Brasil e expressos em sínteses como o lamentável mal-entendido da democracia no País; ou, ainda, a afirmação de que a vida intelectual brasileira seria, ao fim e ao cabo, uma flor de estufa.


Notas

[i] Registro que é uma questão técnica que não deveria implicar necessariamente a rejeição de seu argumento, que não se propõe como comentário especializado a Sergio Buarque, ainda que, no passado, Jessé tenha escrito um excelente artigo sobre Raízes. Mais grave do que a distorção do argumento de Raízes me parece ser a convicção que o autor tem de sua centralidade e funcionalidade na ideologia das classes dominantes brasileiras. Aqui, porém, creio ser mais difícil, talvez impossível, provar o seu erro.

[ii] Partes deste texto foram retirados do texto “Um mapa, uma bússola e os dilemas do Brasil: A queda do aventureiro, vinte anos depois” escrito pela autora como prefácio à nova edição de A queda do aventureiro de Pedro Meira Monteiro, publicado pela editora Relicário em 2021.


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